terça-feira, setembro 25, 2007

Tudo por dinheiro do Governo

http://www.terra.com.br/istoe/edicoes/1977/artigo61436-1.htm

A vitória dos enlatados
Governo troca mistura nutricional consagrada há décadas por produtos
industrializados

HUGO MARQUES

PIONEIRA Há mais de três décadas Clara Brandão criou um composto
alimentar que revolucionou a nutrição infantil
A cena foi comovente. O vice-presidente José Alencar preparava-se para
plantar uma árvore em Brasília quando foi abordado por uma nissei de 65 anos
e 1,60 m de altura. Era manhã da quinta-feira 6. A mulher começou a mostrar
fotografias de crianças esqueléticas, brasileiros com silhueta de etíopes,
mas que tinham sido recuperadas com uma farinha barata e acessível, batizada
de "multimistura" . Alencar marejou os olhos. Pobre na infância no interior
de Minas, o vice não conseguiu soltar uma palavra sequer. Apenas deu um
longo e apertado abraço naquela mulher, *a pediatra Clara Takaki Brandão.
Foi ela quem criou a multimistura, composto de farelos de arroz e trigo,
folha de mandioca e sementes de abóbora e gergelim. *Foi esta fórmula que,
nas últimas três décadas, revolucionou o trabalho da Pastoral da Criança,
reduzindo as taxas de mortalidade infantil no País e ajudando o Brasil a
cumprir as Metas do Milênio. E o que a pediatra foi pedir ao vicepresidente?
Que não deixasse o governo tirar a multimistura da merenda das crianças.
Mais do que isso, ela pediu que o composto fosse adotado oficialmente pelo
governo. Clara já tinha feito o mesmo pedido ao ministro da Saúde, José
Gomes Temporão - mas ele optou pelos compostos das multinacionais, bem mais
caros. "O Temporão disse que não é obrigado a adotar a multimistura" ,
lamenta Clara.
Há duas semanas a energia elétrica da sala de Clara dentro do prédio do
Ministério da Saúde foi cortada. Hoje, ela trabalha no escuro. "Já me
avisaram que agora eu estou clandestina dentro do governo", ironiza a
pediatra. Mas ela nem sempre viveu na escuridão. Prova disso é que, na
semana passada, o governo comemorou a redução de 13% nos óbitos de crianças
entre os anos de 1999 e 2004 - período em que a multimistura tinha se
propagado para todo o País.
Desde 1973, quando chegou à fórmula do composto, Clara já levou sua
multimistura para quase todos os municípios brasileiros, com a ajuda da
Pastoral da Criança, reduto do PT. Os compostos da multimistura têm até 20
vezes mais ferro e vitaminas C e B1 em relação à comida que se distribui nas
merendas escolares de municípios que optaram por comprar produtos
industrializados. Sem contar a economia: "Fica até 121% mais caro dar o
lanche de marca", compara Clara.
Quando ela começou a distribuir a multimistura em Santarém, no Pará, 70% das
crianças estavam subnutridas e os agricultores da região usavam o farelo de
arroz como adubo para as plantas e como comida para engordar porco. Em 1984,
o Unicef constatou aumento de 220% no padrão de crescimento dos subnutridos.
Dessa época, Clara guarda o diário de Joice, uma garotinha de dois anos e
três meses que não sorria, não andava, não falava. Com a multimistura, um
mês depois Joice começou a sorrir e a bater palmas. Hoje, a multimistura é
adotada por 15 países. No Brasil só se transformou em política pública em
Tocantins.
*Clara acredita que enfrenta adversários poderosos. Segundo ela, no governo,
a multimistura começou a ser excluída da merenda escolar para abrir espaço
para o Mucilon, da Nestlé, e a farinha láctea, cujo mercado é dividido entre
a Nestlé e a Procter & Gamble. *"É uma política genocida substituir a
multimistura pela comida industrializada" , ataca a pediatra. A coordenadora
nacional da Pastoral da Criança, Zilda Arns, reconhece que a multimistura
foi importante para diminuir os índices de desnutrição infantil. "A
multimistura ajudou muito", diz. "Mas só ela não é capaz de dizimar a
anemia; também se deve dar importância ao aleitamento materno." ISTOÉ
procurou as autoridades do Ministério da Saúde ao longo de toda a semana,
mas nenhuma delas quis se pronunciar. "O multimistura é um programa que não
existe mais", limitou-se a informar a assessoria de imprensa.